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O despertar de diferentes leituras e sentimentos em “João por um fio”

Resenha Literária

Edição N.º 17 - Junho 2022

Compreender que os livros literários para crianças não devem ser reduzidos a recursos atrativos para se trabalhar um conteúdo escolar ou para resolver questões comportamentais é uma importante perspectiva para a educação básica. Isso porque os livros literários ilustrados não servem para isso ou para aquilo, pois são obras artístico-literárias que tocam, provocam e ampliam as visões, percepções e conhecimentos do mundo dos leitores, sejam eles crianças, jovens ou adultos.

Afinal, a literatura (infantil, juvenil, adulta ou, ainda melhor, sem adjetivo) nos convida a imaginar como seria viver mundos possíveis e impossíveis e, ao mesmo tempo, nos permite pensar em um mesmo tema a partir de diferentes possibilidades, além de contribuir na identificação e nomeação de sentimentos e sensações a partir de sua apreciação. Porque, antes de mais nada, a literatura é esse lugar de descoberta.

Neste mês, a Revista Fique Bem conta com a resenha do livro João por um fio, de Roger Mello, produzida pela educadora e pesquisadora Camila Castro, que é coordenadora na área de Língua Portuguesa no Instituto Sidarta, localizado em Cotia , São Paulo. Camila é mestre em Livros e Literatura para Crianças e Jovens.

 

Quer ser o próximo a publicar sua resenha aqui? Escreva para fiquebem@gaiamais.org. Boa leitura!

Resenha de João por um fio — por Camila Castro




Publicado pela editora Companhia das Letrinhas, em 2006, João por um fio é um livro ilustrado, cuja sequência é conduzida pela integração das linguagens verbal e visual, ou seja, pela relação entre as palavras e as imagens que compõem, juntas, a história. O livro conta a história de João, filho de pescador que, ao ser colocado para dormir sob uma colcha de renda feita à mão, perde-se entre seus pensamentos, mergulhando em um mar de sonhos e medos.

O uso do desenho em linhas, feito com caneta esferográfica, funciona como fio condutor da narrativa. O livro é um verdadeiro “manto de palavras”, pois o fio que ilustra a narrativa visual também conduz a narrativa verbal. Esse fio da história é o fio da manta de dormir, das tecelãs, das histórias que são contadas e da rede de pesca, que representa a profissão do pai de João e a relação do personagem com esse trabalho que envolve medo, inclusive do grande peixe que invade o sonho, e coragem.

 

O fio transforma-se constantemente ao longo da narrativa, produzindo composições variadas, representando peixes, formas geométricas ou mesmo figuras humanas, até conseguir virar um peixe grande e furioso, que deseja devorar João. Neste momento, a rede-colcha rompe-se, e o peixe se vai, reaparecendo ao final da narrativa como objeto: um marcador de páginas, como se tivesse sido fisgado por uma vara de pesca ou por um dos fios da rede-colcha, revelando o envolvimento do planejamento gráfico na composição da narrativa.

 

Composto por páginas, palavras e imagens em três cores (vermelha, preta e branca) que variam de acordo com o momento da história, João por um fio é uma obra aberta, sem final definido. A narrativa possui certo lirismo, próprio de uma cantiga de ninar que, combinada com as imagens, propõe um jogo, em que o leitor é convidado a ler o livro como um quebra-cabeça. Em formato paisagem, o livro tem capa dura e folhas coloridas, lembrando os antigos álbuns de fotografia.

 

A integração entre as linguagens verbal escrita e visual é necessária, pois uma só pode ser melhor compreendida com a leitura em conjunto, promovendo, assim, uma leitura com multiplicidade de significados, permitindo a escolha de vários caminhos e identificação de diferente sentimentos por parte dos leitores, além de quebrar as fronteiras entre a arte e a cultura popular, representada pelo fiar, pela história de pescador e pela cantiga de ninar de tradição oral.

 

Ao se preparar para ler o livro para as crianças, aprecie a narrativa visual. A partir dela, questionar-se sobre o que esse fio narrativo representa para você. Ao final da leitura, responder: “Em que essa história te tocou?”, “Qual foi a parte dela que você considera mais significativa?” e “Em relação a João, qual camada da história chamou mais a sua atenção?”. Para mediar a leitura e ajudar as crianças a falar sobre suas percepções e seus sentimentos, você deve passar pelo mesmo caminho antes e junto com elas.

 

Em seguida, é importante preparar-se para realizar a leitura em voz alta. Ler em voz alta para si é uma ótima estratégia não apenas para se preparar para a leitura e conhecer melhor a narrativa, como para (re)ler de outro lugar, ouvindo a própria voz. Ao final, retomar pontos importantes do livro que permita a identificação das diferentes camadas do livro que podem ser identificadas pelas crianças: os medos de João, seus sonhos, a relação com a mãe, a relação com o pai, as diferentes representações da manta (ora como coberta, ora como rede de pesca, ora como montanha), as diferentes relações e sentimentos que a hora de dormir, o beijo, os sonhos e os pesadelos provocam nos seres humanos, a forma como as crianças vão dormir: quem ouve uma história, uma música ou uma cantiga? Preparar-se para a leitura é fundamental para ajudar a criar pontes para os mundos possíveis e impossíveis.

 

Após apresentar o livro e seu autor-ilustrador, fazer combinados para a leitura. Fazer uma leitura primeiro sem pausas, mostrando as imagens após a leitura do texto. Ao final, silenciar. Deixar que as crianças quebrem o silêncio após a história se assentar e permitir que elas falem sobre seus sentimentos e as sensações que tiveram com a história. Aproveitar para ouvi-las, sem esperar uma resposta certa ou determinada. Estar presente, escutando ativa e atenciosamente, é fundamental para que as crianças se sintam seguras para compartilhar. Se possível, registrar algumas falas, sentimentos e percepções, afinal, esses são momentos ricos de troca.

 

Em seguida, combinar que será feita mais uma leitura, agora com pausas. Escolha momentos em que seja possível relacionar aspectos de fruição, medos e sonhos que as crianças trouxeram após a primeira leitura, com a narrativa do livro. Por exemplo, é possível explorar com as crianças o final, afinal, o autor deixa-o em aberto, sugerindo que tudo pode ter sido um sonho ou que a rede (ou a história) desfiou e, então, João teria que tecer tudo novamente.

 

Desse modo, é possível propor a criação coletiva de um final para a história ou do início de uma nova, utilizando um pedaço de linha. Ao segurar um fio, tecer uma sentença e entregar o restante do novelo a uma criança, que deve continuar a história, segurar outro ponto do fio e passá-lo para outra criança e, assim, sucessivamente. Ao final, convidar as crianças a apreciarem a manta tecida a partir da trajetória que o fio fez durante a criação da história. Conversar sobre o que sentiram em participar da elaboração da história e ao final, ao contemplar coletivamente a manta.

REVISTA

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