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“A Invasão” reconta a história do Brasil de 1500 sob a perspectiva guarani

Resenha Literária

Edição N.º 20 - Setembro de 2022

Vamos fazer uma revisão rápida do nosso calendário de feriados? No dia 07 de setembro, logo agora, comemoramos o quê? E no dia 22 de abril, qual é o nome do feriado? Se você respondeu a independência do Brasil para a primeira pergunta e o descobrimento do país na segunda, quero te fazer um convite à reflexão. Será que, de fato, o nosso país foi descoberto em abril de 1500, ou será que já tinha alguém vivendo por aqui? Descobrimento é a melhor palavra para definir a chegada dos portugueses nas nossas terras?

Propondo um olhar diferente daquele que nos foi ensinado nas escolas não-indígenas, o escritor guarani Olívio Jekupé publicou o livro A Invasão. Publicado em 2020, a obra busca apresentar ao leitor o olhar do indígena sobre o que muitos de nós chama de descobrimento do Brasil. 


Neste mês, a Revista Fique Bem não trouxe uma resenha desse livro. Mais que isso, a nossa redação entrevistou o autor, para entender, dele mesmo, qual o objetivo da obra. Se segura que essa conversa pode te provocar a ressignificar toda a história do nosso país. Aproveite a leitura e boa reflexão!

Quer ser o próximo a publicar sua resenha aqui?

Escreva para fiquebem@gaiamais.org. Boa leitura!


Conheça a obra e o autor de A Invasão — por Olívio Jekupé.




Pense em algum livro que você já leu a respeito dos povos indígenas. A primeira obra que veio à sua mente foi o livro O Guarani, de José de Alencar? Provavelmente, foi. Agora, reflita: com a mesma lógica que defendemos que precisamos de mais mulheres, de mais pessoas LGBTQIA+ e de mais autores negros na nossa estante e nas bibliotecas das nossas escolas, precisamos refletir o quanto a obra indígena faz parte do nosso portifólio. E, por obra indígena, não estamos querendo falar apenas de livros que falam sobre os povos originários, mas livros escritos por pessoas indígenas. 

Olívio Jekupé é um escritor guarani de literatura nativa. Nascido em 1965, no Paraná, Olívio escreve desde 1984 e já publicou mais de 24 livros. Hoje, Olívio mora na aldeia Kakane Porã, em Curitiba, e topou conversar com a redação da Revista Fique Bem sobre o seu livro intitulado A Invasão. 

“Nós indígenas temos um pensamento diferente sobre a história do nosso país. Para a gente, o Brasil nunca foi descoberto, ele foi invadido em 1500. Desde o início, os nossos parentes, indígenas que aqui estavam na época, foram enganados. Os indígenas acolheram os portugueses com carinho e, na verdade, estava acontecendo uma traição por trás. Por isso, eu resolvi escrever um livro para falar sobre essa invasão”, conta Olívio.

Olívio estudou Filosofia na Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR) e na Universidade de São Paulo (USP). Segundo ele, a produção do seu livro se deu diante de muita pesquisa, unindo o conhecimento oral que ele mesmo acumulou durante a sua vida e a literatura produzida por não-indígenas, que contam o massacre indígena que aconteceu no Brasil — e segue acontecendo desde 1500.

“Eu sempre acreditei que era muito importante a gente, indígena, escrever para contar uma história diferente do que é contado nos livros de história. Afinal, muitos desses livros carregam um preconceito muito grande. Hoje, eu fico feliz que muitas escolas no Brasil estão trabalhando com as minhas obras e com outros autores indígenas, pois a nossa voz está sendo ouvida”, afirma o autor.

“A gente sabe que o professor é o nosso porta-voz. A gente sabe que é, através dele, é que a literatura nativa ficou mais conhecida nos últimos anos, né? É graças aos professores, e sabem que, quanto mais os professores vão trabalhando com os nossos textos, mais eles vão nos ajudando”, pontua Olívio.

Para o escritor, a obra de José de Alencar, por exemplo, precisa ser vista como uma obra de ficção escrita por um não-indígena. “É uma ficção dele, não é uma ficção indígena”, afirma. “Eu sempre acompanhei os livros de história e vejo coisas absurdas, porque a história indígena é muito mal contada. Ela é contada pela visão do não-indígena”, reforça ele, que é guarani, e que acredita que o ideal para o não-indígena seja ler as obras de vários autores indígenas, pois cada povo tem o seu olhar e a sua cultura. 

No livro A Invasão, Olívio fala sobre a influência religiosa que os jesuítas tiveram sobre o povo nativo, explica o massacre indígena que aconteceu com os bandeirantes, e ainda explica como as doenças que chegaram com os portugueses mataram diversos indígenas.

“A primeira coisa ruim foi a doença. Assim que os portugueses chegaram aqui, muitos indígenas começaram a morrer, porque eles trouxeram doenças junto com eles. Se você não fica doente, você não tem anticorpos. É a mesma coisa que aconteceu com a covid: o vírus chegou, não existiam anticorpos e muitas pessoas morreram até desenvolverem essa proteção. Foi isso que aconteceu também em 1500”, exemplifica o escritor. “A gente fala sobre a questão dos bandeirantes, que eles massacraram os povos indígenas e isso é essencial de ser falado. Esse massacre começou em 1500 e vai até os dias de hoje”, pontua. 

“Quando eu falo ‘a invasão’, as pessoas sabem que não se trata de um descobrimento, o Brasil foi invadido. Mas, na verdade, muitos professores não têm essa noção de invasão. Por isso, é importante mudar essa mentalidade, mudar essa história que é replicada para os alunos”, diz ele. “Se os professores começarem a falar que o Brasil foi invadido em 1500, então as coisas vão começar a mudar, porque as crianças vão ter uma visão diferente da história”, ressalta. 

“As obras que muitos lêem sobre o indígena é pautada na visão do outro, né? Dizem que o índio é selvagem, é primitivo, mas ninguém deu espaço pra gente falar. Então, com a literatura, hoje a gente pode mostrar como pensamos”, reforça. “Esse livro eu indico muito para os professores, porque é uma forma diferente de mostrar a história. Aqui a gente mostra que o país era nosso, mas não é mais. Porque os brasileiros têm o costume de falar assim ‘ah, mas os índios são os verdadeiros donos dessa terra’, sim, mas só na teoria, né? Nada mudou, só mudou a época”, denuncia o escritor. 

E se você se interessar por mais livros de texto crítico sobre a cultura e a história indígena, Olívio recomenda a escrita da sua esposa, Jovina Renhga do povo Kaingang. “Ela vai lançar um livro agora chamado A Marcha das Mulheres. É um livro crítico, que vai ser traduzido em quatro línguas e que vai mostrar um pouco da luta das mulheres indígenas”, afirma. A esposa de Olívio esteve na Marcha das Mulheres em Brasília no ano passado e foi baleada pela polícia. O livro conta um pouco sobre essa história. 

“A gente que é indígena tem que escrever, a gente tem a missão de escrever para não ter problema. No Brasil, a história é sempre contada pela visão do dominante, não do oprimido. Então precisamos contar o outro lado da história”, encerra Olívio, que além de ter a esposa também como escritora, é pai do MC Kunumi, hoje chamado de Owerá, que é escritor e músico, focado em apresentar a cultura guarani e as causas urgentes do povo indígena através do rap.

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