Educadores LGBTQIAP+ desabafam sobre o desafio de sair do armário múltiplas vezes nas escolas
Casal de professoras compartilha vivências e mostra como gênero, passabilidade e até o dinheiro no bolso podem implicar em posturas diferentes na sala de aula
Diversidades
Edição N.º 29, Junho de 2023
Junho chegou e, junto à canjica e às bandeirinhas de festa junina, chega também o Mês do Orgulho LGBTQIAP+. Ou seja, como se fosse mais um evento, é chegado o “momento de se falar”, inclusive institucionalmente, sobre uma comunidade que está o ano inteiro passando por desafios dentro e fora do ambiente escolar.
Para quem não pertence à comunidade, talvez seja interessante um exercício. Reflita por aí: no dia a dia, você pode falar sobre si, sua família e sua rotina? No trabalho, as pessoas sabem se você tem um relacionamento, se tem filhos, com quem você se diverte? Pois é. Essa facilidade que as pessoas hétero têm, ao não precisar medir palavras na hora de falar da própria vida ou de não ter que procurar um “momento certo” para ter essas conversas, é um privilégio. E, quando trabalhamos com educação, o desafio para a comunidade LGBTQIAP+ fica ainda maior.
“Quando a gente fala em carreira, a gente fica no meio de dois receios. O receio de não subir porque eu sou lésbica, e quem está acima de mim é contra isso e vai dificultar o meu percurso. E o receio de não subir porque eu não me conecto com as pessoas, eu não consigo ser autêntica e as pessoas vão sempre me ver como alguém superficial. Então, a gente fica nessa balança pesando essas duas coisas. O que vai me prejudicar mais? O que vai me prejudicar menos? Falar ou não falar?”, conta uma das nossas professoras convidadas. “É uma saída do armário, que muita gente tem dificuldade de fazer. Como professora, piora, porque é isso repetido a cada nova sala de aula, você sai de um novo armário a cada nova instituição”.
A fala é de Denise Bittar-Godinho, professora de São Paulo, casada com a também educadora Juliana Bittar-Godinho. Denise conta que, com a prática, esse constante sair de armários se tornou mais fácil. Contudo, para ela, encarar esse desafio não foi apenas uma escolha.
Esse assunto tem relevância para a aula?
No caso de Denise, a questão LGBTQIAP+ vem muito mais à tona que no caso de Juliana, pois Denise tem “menor passabilidade hétero”, ou seja, Juliana recebe mais aceitação social que a esposa, enquanto uma mulher lésbica. “Antes da Denise, eu morei junto por cinco anos e pouquinho com outra mulher, mas não falei dela na sala de aula durante todo esse tempo”, comenta Juliana. “Hoje, eu falo também por um posicionamento político”, aponta.
“O meu silêncio antes tinha a ver com essa passabilidade, mas também já tinha a ver com um diagnóstico que eu recebi recentemente de autismo. Enquanto autista, naquela época, eu já tinha uma dificuldade maior de me conectar com os meus alunos, então não conseguia falar nada da minha realidade, era mais reservada”, comenta. “Quando eu me casei, me vi nessa situação de: ‘Tem esse sobrenome aqui, tem esse hífen, como é que eu explico?’. Até porque o pai da Denise também faz parte da academia, também é professor, as pessoas associam o nome e perguntam o que eu sou do Bolivar Godinho. E eu respondo: sou a nora”, acrescenta Juliana.
Para Denise, a experiência foi diferente: “No meu caso, é comum perceber umas conversinhas, uns olhares… pra quem está ali na frente, é muito desconfortável. A professora fica absolutamente exposta e vulnerável. Então, falar abertamente com os alunos pode ser o melhor caminho. Mas é preciso também observar se você está em um ambiente seguro, se você não vai perder espaço, institucionalmente, por ter falado sobre esse tema”, pondera.
“Com os alunos, em geral, falar é bom porque cria vínculo. E é isso que eu falo para rebater aquele argumento de que esse assunto não tem relevância pra aula. Não tem relevância para o conteúdo, mas tem relevância para mim, como ser humano. Muitas vezes, o tal do ‘aluno difícil’ é um aluno que não se sente pertencente. Um aluno gay já veio falar comigo no final da aula sobre isso”, lembra. “Toda vez que a gente coloca em evidência uma característica nossa que não é dominante, que traz diversidade, a gente se conecta com outras pessoas que também estavam se sentindo sufocadas com essa mesma característica, como um estranho no ninho”, conclui.
O casal pontua ainda que a situação muda muito conforme o poder aquisitivo da mulher lésbica que atua com educação. “Eu me vi fazendo isso com mais facilidade quando eu estava dando aula, mas também estava trabalhando em outro lugar, com meu salário garantido”, comenta Juliana. Denise foi categórica: “Eu acho que isso que a Juliana está falando tem a ver com a gente tomar pra nós a autoestima do homem branco hétero. Eu sinto que eles têm mais sucesso nas suas carreiras, porque se posicionam com mais confiança, com a certeza de que nada do que eles falarem vai abalar a imagem de profissional que eles são. Para nós, essa confiança se dá no aspecto financeiro. Isso muda o ambiente, a forma como você fala fica diferente, e a forma como as pessoas te percebem também passa a ser diferente”, completa.
Quando a censura não passa de homofobia
A redação da revista Fique Bem falou sobre o assunto com um professor que não quis ser identificado nesta reportagem. Gay, ele contou que, neste ano, estava começando a se sentir mais confortável para falar sobre o seu marido na sala de aula, e apenas quando o assunto surgia. Contudo, depois de um episódio no início do ano, teve essa liberdade questionada. Segundo o professor, um dia, ele usou a palavra “todes” para dar bom dia aos alunos e, durante a aula, a linguagem neutra utilizada nesta única palavra não gerou qualquer tipo de debate. Porém, mais tarde, o professor foi chamado para uma conversa com a coordenação da disciplina na escola.
“Nessa conversa, eu não tive espaço de fala e ouvi frases como: ‘Nós, professores, não somos pagos para dar a nossa opinião’, ‘A sua luta, tem que ser feita do portão pra fora’ e ‘Você não pode ser quem você é aqui”, conta ele. Apesar de ter levantado o assunto em uma conversa posterior, com a coordenação das turmas que leciona, a situação se repetiu: ninguém quis ouvir o seu lado da história e a recomendação foi de ser “discreto” e mais: não falar sobre seu relacionamento na sala de aula.
“A gente está se assumindo o tempo todo. Não basta se assumir pro pai, pro amigo, pra mãe, pro irmão… todo dia a gente tem que se assumir. E é horrível ter que sair do armário todo dia. Eu não quero ter que fazer isso, quero que seja algo normal”, desabafa. “Me disseram que eu não poderia dar espaço para os alunos ‘ficarem entrando na minha vida’. Mas como que um professor quer criar vínculo com um aluno se ele não pode falar do que ele gosta, de quem ele é? Vamos criar vínculo a partir do quê? Do conteúdo? Ou ele gosta da minha disciplina e a gente vai falar estritamente do nosso conteúdo, ou a gente não pode falar da vida?”, completa.
Nos últimos dias, o professor teve a oportunidade de falar com a direção da escola sobre o ocorrido e, nessa conversa privada, encontrou acolhimento. “Me perguntou o que tinha acontecido, disse até que queria ver meu marido na festa junina. Senti ali que, sim, eu posso ser quem eu sou”, afirma ele. “Não sei o que vai mudar de agora em diante na coordenação, talvez nada mude, mas agora eu sei que, se alguma coisa voltar a acontecer nesse sentido, eu tenho caminho aberto com a direção e vou poder trabalhar isso, vou poder falar, sendo ouvido ou não. Mas eu tenho espaço para falar e isso já faz muita diferença”, completa o professor.
Se você acompanha a revista Fique Bem, já deve ter percebido a interseccionalidade dos nossos conteúdos e visto que não resumimos temáticas com essas a um calendário de eventos, mas é claro que não poderíamos deixar de trazer o nosso olhar para esse debate. Enfim, para encerrar esse texto com um suspiro de alívio, queremos divulgar aqui que Gabriel Romão, homem negro trans e o nosso primeiro convidado na editoria Diversidades, deu uma palestra no último dia 04 de junho, no TEDx Blumenau. Um parabéns, Gabriel! E, a todes da comunidade LGBTQIAP+, nosso sincero abraço e nosso compromisso: contem com a gente.